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Associação Casa da Árvore

O tempo de poesia pela pena de Gilson Cavalcante

Instado, pelo autor, a manifestar algumas impressões sobre o livro de poesia “A arte de desmantelar calendários”, tomei a missão menos como crítico e mais como amigo e afins no ofício de tecer versos. De resto, não entendo dispor da bagagem intelectual e suficiente domínio do aparato técnico para análises críticas. (Gesimário de França Carvalho)



Assim que, à guisa de metodologia, fui lendo poemas e anotando impressões. Mas a abundância de aspectos que me iam suscitando era tão grande que percebi a opção impraticável. Dessa forma, fui pincelando impressões aqui e acolá, mencionando alguns textos dos poemas, à medida que a necessidade se me impunha. Ao cabo de tudo, sei não ter construído nenhum gênero textual específico. Releve-o, amigo, pois tá repleto de sinceridade e apreço pela sua poesia.


É fácil se deparar, nas múltiplas temáticas poéticas gilseanas, um gosto peculiar pelas antíteses, pelos paradoxos, que ultrapassa o simples manuseio estilístico das figuras de linguagem. É assim, por exemplo, que sua poesia lida com a questão temporal. O tempo, ali, é aliado e opositor. Ao mesmo tempo que estabelece o élan que capta o instantâneo da manifestação poética, é, também, a causa da desagregação do eu poético e que pode, eventualmente, escoar “pelo vão das almas”.


Tais meneios possibilita lidar com a solidão poética como uma farsa, um arremedo de ausência, de silêncio, onde a poesia mira sua concretude. Uma habitação de fantasmas, de seres encantados, tecidos de abstrações.


Não raro, os versos de Gilson Cavalcante são forjados em uma sintaxe desconcertante. Se a gramática do verso pode ser palpável, digamos assim, em licença poética, o mesmo não se pode dizer das suas intencionalidades. Os enlaces, que podem pressupor alguns afetos, são difusos e inaprisionáveis. É necessário um pacto de aceitação, como bilhete de viagem ou se arrisca o embarque. Uma semântica dissonante, dodecafônica, dá a deixa para os desavisados.


A poesia persegue um momento crucial entre a dor interior e o sacrifício. É ritual.


Frequentemente, essa poesia apresenta um fenômeno de mão dupla. Ora ela é paciente, ora é agente de um certo fazer poético. Se algumas cadeias de versos se mostram inteiras sob domínio das mãos do poeta, de posse de suas rédeas, de cada compasso, simbologia ou artifícios gramático-semânticos, em outros, a poesia é possuidora, parece tomar conta do poeta, tomar vida própria se encanta/desencanta como se fosse uma força da natureza a existir por si mesma.


A memória, as lembranças afetivas, o acervo de experiências vividas e (re)criadas. O empório do poeta é seu testamento (ora guardião, fiel depositário, ora tabelião) o seu espólio garantirá saudade de si mesmo depois de sua partida.


Mais que confessional, é uma poesia de combate, de autoindulgência, de um tanto de anarquia, um tanto de dor. Temerária, não tem medo de expor seus reveses, algumas poucas alegrias.


Um poeta demonstra, entre outras coisas, sua maturidade no fazer poético exatamente no que o ofício tem de mais espinhoso: a conversão em versos, em imagens, da difícil semântica do sentir. Às vezes, como aponta alhures, “parece um castigo remendar os rascunhos dos gestos definitivos”

Talvez por isso (ou por incompetência de leitura deste “critico”, o que é mais provável), a poesia gilseana, não raro, se valha da utilização de metáforas desconcertantes, à moda dos simbolistas, o que, no meu sentir, não significa, necessariamente, um mérito. Tais modelos de composições poéticas tem o poder de provocar uma disruptura na compreensão da leitura, na apreensão das suas imagens e do seu ritmo, enfim, compromete exatamente o que há de mais proveitoso na leitura poética. Cito como exemplo, os versos seguintes:


na clarividência das mangabas

o visgo do voo no vão da fala des/aba abismos”


Arriscar-se nessas trilhas, é uma opção dos neófitos da poesia que, a pretexto de apresentar ao leitor um arcabouço complexo e rebuscado, utiliza-se de certos maneirismos para disfarçar ou minimizar eventuais limitações técnicas e artísticas. Não é o caso, entretanto, de Gilson Cavalcante, que faz prova contrária, por intermédios de outros tantos textos, no mesmo livro, de insuspeita intimidade (e leveza) com o ofício poético. É o que demonstra o poema Tentação dos abismos. Ali, a harmonização de símbolos e significados promovem, sob a feição de um lirismo supostamente mais simples, um belo panorama de significações. Inclusive com o poeta recorrendo, mais uma vez, à relação imagética mangaba/visgo.


a parte alada da vida ficaria grudada na pele e alma feito visgo de mangaba

e o aroma dos curtumes abrindo os caminhos à sovela para a intenção das sandálias

e suas fivelas”


Há uma inquietude, quanto ao estilo (ou ausência dele) que aponta para um poeta experimentalista. A poesia, herdeira de tantos movimentos artísticos precedentes, é assim mesmo. Múltipla, indefinível, semiótica, metalinguística. Seu diálogo com o audiovisual é recorrente. Mas se expansão do universo expressivo da arte pode ser uma bênção, pode ser, também, uma armadilha. Há, na poesia desses tempos, uma “consciência fonológica” que produz uma sedução corriqueira pelas aliterações, assonâncias, jogos de palavras que produzem efeitos sonoros maneiros, etc. As escolhas lexicais, nesses casos, costumam sacrificar o conteúdo em detrimento da forma. Vejo isso no poema “Auto do poeta em preto e branco”. No meu sentir, não reside nesses momentos, o melhor da poesia gilseana:


por ser dado a canhestro,

a vida me quis preso nas rédeas do cabresto.

andei sempre pela esquerda à procura de arresto.

meus inimigos insistem que não presto.

mas é na força dos contrários que aposto.

por isso, o gesto ambidestro no rosto que amo e detesto.

ando vago a torto e a direito.

pensar, ah, pensar é meu defeito”.


assola o sol na ponta da sovela o olho aceso na sela”


Sei que, por um lado, estou sendo arrastado pelo impressionismo, tão próprio dos críticos limitados. Mas sou encantado pelo poeta que reinventa o humano, com “punhal de pedra no peito”.....a vida e suas ardilosas cavilações, pra me valer de uma redundância. Vista por janelas democráticas, diligentemente abertas, por onde devem entrar o sol, a liberdade e o amor. E se pode ver, de soslaio, a silhueta do pecado, em forma de seios da donzela.


Saber que os sentimentos de mensurar a vida, o mundo, são instrumentalizados pelos olhos e não por réguas que, eventualmente, traçariam caminhos exatos na vida.


Abraços poéticos.

Palmas, fevereiro de 2021.

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